sábado, 3 de março de 2012

Minha louça

"Caro Sr. Teixeira,

fiquei sabendo da promoção que o senhor está a promover na cidade. Bem, eu aposto que o senhor deve ter recebido estórias maravilhosas sobre nascimentos de bebês, casamentos felizes e tudo o que há de clichê e feliz sobre famílias nas redondezas. Fico feliz por todos esses mentirosos que o enviaram essas cartas e por suas falaciosas felicidades.
Sim, mentira é uma palavra muito forte, mas verdadeira nesse caso. Aposto que alguns lhe enviaram cartas falando sobre como sofreram e agora deram a volta por cima. Sobre como suas mulheres, maridos, filhos morreram e agora eles se lembram deles numa linda lembrança de uma tarde de domingo. MENTIROSOS. É isso que eles são. Ninguém fica feliz depois de perder alguém para a morte, depois de ser traído, depois de perder sua casa. NINGUÉM. E se um dia, consegue-se ser feliz, não se deve creditar a felicidade em superação própria, não. Minha mãe morreu quando eu era adolescente, e acredite em mim, eu nunca superei a morte dela. Não. Nunca. Se eu fui feliz depois disso? Sim, eu fui. Mas não porque eu sou forte. Mas sim porque a vida continua. Ninguém abre mão da própria felicidade, e mortos estão mortos, sempre estarão. Não posso fazer nada por ela, nem pude quando o filho da puta do meu irmão a matou. Eu também não tenho a cara de pau de dizer que eu o perdoo, que eu entendo ele, já que a falecida era uma puta que nos maltratava e que iria me matar se ele não entrasse na frente e metesse a faca nela quinze vezes.
Ele está na prisão. Eu morro de raiva dele. Queria eu que minha mãe tivesse me matado naquele dia. Tanto sofrimento seria evitado. Acredite em mim, eu teria uma vida melhor se eu tivesse morrido naquele dia, senhor.
O senhor me entende? Um dia eu contei isso a uma freira, e ela disse que a minha historia é muito bonita, que eu deveria escrever um livro. Deus que me perdoe mas eu mandei aquela puta ir tomar no meio do cu dela. "O que há de bonito nessa vida fodida que eu tive?", eu perguntei. Como o senhor deve imaginar ela não soube me responder. Eu não entendo porque as pessoas querem transformar o sofrimento numa coisa bonita. Sofrimento é pra causar dor, se alguém realmente me admirasse, não me daria flores, não me diria palavras bonitas. Não é isso que eu quero. Eu quero ver a pessoa se colocar no meu lugar. Sofrer. Ai sim, eu ficaria feliz. Perguntaria a essa pessoa o que ela teria feito no meu lugar.
Mas eu não estou escrevendo para me lamentar, nem para desabafar, nem para criar pena. Quero falar sobre minha louça de porcelana.
Eu sou casada a quinze anos, e de lá pra cá não há nesse mundo um adjetivo que caracterize melhor minha vida do que "estável". Meu marido é estável, tem um emprego estável. Meu filho tem quatorze, suas notas no colégio são boas e estáveis, ele está pela primeira vez num relacionamento amoroso estável, com uma menina filha de uma advogada e um bancário, estáveis.
Minha vida é chata., entediante.
Meus amores são: em primeiro lugar, as rosas do meu jardim, eu as podo, rego, converso com elas e as corto para que elas cumpram o seu dever, um dos mais lindos na minha opinião: enfeitar e embelezar a vida. Em segundo lugar está minha costura, estou costurando uma nova cortina para o banheiro, está ficando ridícula, mas está me deixando feliz (ela está quase pronta!). Em terceiro, porém não menos importante está minha louça de porcelana. Todas as semanas eu a tiro do lugar, lavo peça por peça, enxugo, faço o polimento e guardo.
Eu a ganhei de presente de um amigo do Paulo, meu marido. O nome desse amigo é Geraldo. Ele é um homem alto, magro, cabelos bagunçados, fuma, bebe, xinga. O oposto de Paulo, instável.
Eu dei para Geraldo.
Dei uma, dei duas, dei três, dei mil vezes e daria mais um milhão se eu pudesse. Estar com ele era o meu único incentivo a continuar vivendo. Pensei mil vezes em me divorciar e ficar com ele (e ele teria aceitado), mas a graça estava na instabilidade do nosso relacionamento. Eu sei que se eu casasse com ele, ele ficaria exatamente como o Paulo. E eu daria para o primeiro melhor e mais jovem amigo que batesse à nossa porta. Eu não queria dar para outro. Eu queria o Paulo. Ele era a rosa que enfeitava a sala da minha vida. Entende?
Um dia ele disse que me amava demais para me ver casada com outro homem. Eu disse a ele que deixasse de ser um baitola dramático e me fodesse sobre a mesa da cozinha. Ele disse que não, que queria me amar como eu merecia. Então eu virei para ele e disse que eu era uma puta que deixava meu filho na escola e ia trair meu marido com o melhor amigo dele. "Eu não mereço o seu amor, Geraldo." "Mas eu quero te dar o meu amor." "E eu quero ser comida na mesa da cozinha, quem vai ter o pedido atendido?". Ele me mandou ir embora.
No dia seguinte apareceu aqui em casa. Chapéu na cabeça, todo bonito. Disse que estava passando para dizer adeus, e nos trazer presentes de despedida. Deu ao Paulo uma camisa pólo, ao Bruno (nosso filho) deu um livro, e a mim deu um conjunto de pratos de porcelana, lindo, com rosas amarelas desenhadas. "Pra você lembrar de mim."
Desde então, eu cuido daquela louça como se estivesse cuidando dele, nunca a usei. Nunca a tirei do armário com outro fim a não ser cuidar dela, mimá-la. Tenho medo de perder alguma peça, de trincar, de arranhar com uma faca. Não. Não a uso porque a amo demais, mais do que amei ao Geraldo, talvez.
Semana passada eu recebi a mais linda das notícias! Um revista de jardinagem vinha me fazer uma entrevista sobre as minhas roseiras! As minha meninas! Eu fiquei empolgadíssima. Eles viriam na quarta, às 11h. Então eu pensei que fosse a hora de usar o Geraldo. Quer dizer, a louça do Geraldo. Então virei pro meu filho "Bruno, vai lá no armário da sala de jantar e pega uma caixa grande que tem lá pra mãe. Cuidado que é pesado! Pega e bota na mesa da cozinha."
Fui dar a notícia às minhas meninas. "Todo esse esforço que mamãe tem com vocês valeu a pena! Nós vamos ficar famosas!". Eu estava deliciada. BANG. Um estardalhaço invadiu a cozinha. Quando eu irrompi pela porta encontrei um Bruno pasmo dizendo que não tinha prestado atenção onde a mesa estava e soltou o Geraldo no ar. Ou seja, a louça. Meus olhos se encheram de lágrimas, eu prendi o choro, me abaixei, abri a caixa e vi os cacos da minha paixão. Bruno disse que sentia muito, queria saber o que ele podia fazer para me ajudar. "Calar a boca é um bom começo, seu demente." eu pensei. Então eu virei para ele e disse:
-Sabe, meu filho. Tem coisas que a gente dá muito valor nessa vida e por isso superprotege, não as aproveita. Essa louça era uma das minhas maiores paixões na vida. Sim, essa que você acabou de quebrar. Entretanto eu me pergunto se o grande erro foi seu, que fodeu com a minha paixão, ou se foi meu, que nunca fez uso da louça. Seja como for, essa louça representava uma ilusão. Uma ilusão de que se eu a lavasse toda semana eu teria o mesmo prazer que eu tinha dando pra quem me deu ela. Não faça essa cara de assustado. Não me julgue, moleque. Você não sabe o que é vida, você não sabe o que é se enterrar em merda. Mas você está prestes a descobrir. Ah se está! Por que eu não aguento mais essa vida. Eu gosto de rosas, eu gosto de coisas que crescem de novo que renascem não importa quantas vezes a cortem. Minha missão aqui era te criar, ver que você já estava pronto pra vida. Bem, suponho eu que você já esteja bem grandinho, já que você acabou de tentar foder com a minha, seu imundo! Então eu acho que não tem mais nada que me prenda aqui, eu não quero ficar aqui pra ver você se tornar um inútil como seu pai, nem pra lavar os lenços cheios de catarro daquele maldito. Eu quero começar a fazer uma coisa que eu nunca fiz: viver. Renascer como uma rosa podada. Amarela, linda. E quem sabe alguém um dia me pinte num prato e me dê de presente a uma paixão.
-Eu sei que você vai ter raiva de mim, eu sei que eu estou fodendo tudo. Mas foi você que começou esse jogo. Fale pro seu pai que tem feijão congelado no freezer, e que o remédio pra hemorroida dele está na pia do banheiro. E você, aproveite a vida sem uma mãe. Eu já estive no seu lugar, e acredite: vai ser uma merda. Não há mais nada que eu possa fazer agora. Pensasse nas consequências antes de 'não ver onde estava a mesa'.
Virei as costas e sai. Me mudei pra essa nova cidade de onde agora escrevo e peço para que minha história seja lida na quermesse junina. Agora estou contente, e pela primeira vez posso dizer que superei algo: a perda da minha louça. O senhor tinha que ver como ela era linda...
Bem, o que o senhor me diz? Na minha opinião, a minha históra é muito mais interessante do que qualquer outra que o senhor recebeu. É uma mentira, admito. Mas uma mentira muito mais convincente do que essas banais sobre as quais me referi, aqui nós temos um exemplo de vida! Um estória inusitada! Além de ter um final feliz.

Espero por sua resposta,

Regina Gonzaga."