terça-feira, 31 de maio de 2011

Alice Félix

Caneta descansada na mão, mão descançada no caderno. Na página presente lia-se milhares de "oi's" vazios, sem interlocutores. Dos olhos escuros, escorregava uma lágrima daquela que vem logo após o bocejo. Na televisão passava o video de Peter Pan, mais uma tentativa de ter uma fonte de inspiração.
Alice tinha há uns anos a estranha mania de ver cores em tudo que a circundava. Pessoas, sentimentos, livros, filmes. Naquele momento, ela olhava o caderno e via cinza, olhava pela janela e via a tarde ensolarada de domingo, cinza. Olhava o copo d'água em cima da mesinha de centro, cinza. Olhava o espelho, cinza. O relógio era cinza. O filme era colorido, Peter Pan sempre foi e sempre será verde claro.
"Que porra de vida" ria-se de sua própria desgraça. Alice preferia o preto ao cinza: o preto era morto, decidido em sua existência. Contrário ao branco, contrário à paz. O cinza era doente, e Alice sempre preferiu a morte à certas doenças, a morte dava descanço. A doença cansava. Alice estava doente. Talvez até uma patologia mais grave que câncer, tumores ou cistos. Alice tinha uma alma desiludida. Metástase.
Porém não, Alice não estava deprimida. Longe disso, aliás. Apenas desiludida, desanimada, com a vista cheia de cinza. Ria-se de seu desanimo. Achava bom não querer sair de casa. Não se depilava, não penteava o cabelo, trajava pijamas e escutava Chico o dia inteiro; "apesar de você amanhã a de ser outro dia". Regava o vaso de gérberas, dava ração ao gato. Saia somente para trabalhar, e quando o fazia. Tratava de tomar seu sorvete colorê sentada no banco da praça, sozinha.
Como o sorvete que descia por seu esôfago, Alice sabia que sua memória era mais colorida que um catálogo de cores. Alice costumava ser uma daquelas garotas que não se acredita que existem a menos que se veja. Sonhadora, cheia de amigos, inteligente, bonita. Em sua memória poderia ver, rever e reviver momentos amarelos ofuscantes, azuis profundos, rosas chock, vermelhos vivos, verdes claros, assim como Peter Pan.
Talvez esse fosse o problema de Alice, talvez ela tivesse sido tão feliz em seu passado que não achava que precisasse de mais no presente, sendo assim não buscava mais felicidade. Aliás essa suposição até mesmo a assustava. Um dia Alice foi ao psicólogo:
-Qual o seu problema, querida?
-Eu tenho medo de ser feliz pra sempre.
-Vou te encaminhar a um psiquiatra.
Alice não era louca e sabia daquilo. Mas como saberia se era feliz se não tivesse tristezas para provar tal situação. Tristezas apimentam a relação com a felicidade, assim como brigas apimentam relações amorosas. Alice queria ser feliz, mas queria ter tristezas.
Naquele momento, Alice não era nem triste nem feliz. Costumava dizer que aquele era um momento peso de papel. Mas sabia também que a vida era curta e que ser um peso de papel que não segurava papel contra o vento era pura perda de tempo.
Alice um dia passou por uma loja elegante no centro da cidade a caminho do trabalho. Alice ouvia 22 e cantarolava os versos da menina semelhante à própria, tinha um sorvete de pistache na mão e um "bigodinho" verde e gelado acima da boca. Alice parou em frente à vitrine e olhou aquele vestido violeta. Setecentos e oitenta e três reais constava a etiqueta. Num ato impensado e espontâneo, Alice entrou na loja, experimentou e comprou o vestido. Saiu da loja com o vestido no corpo. Fazia tempo que não sentia tão bonita. Fazia tempo que não havia ninguém que risse de suas doideiras. Fazia tempo que não havia ninguem que lhe dava motivo pra depilar a virilha. Fazia tempo que não acordava de manhã e sentia mais dois pés em sua cama.
Naquele dia, Alice sairia do trabalho, passaria na padaria, compraria pão e iria para casa tentar escrever mais uma vez. Mudança de planos, vamos dar um final feliz a essa história. Naquele dia, Alice iria sair direto do trabalho para um pub, e de vestido violeta e all star curtiria um show de rock alternativo. Beberia, riria, flertaria o garçom boa pinta mas beijaria o rapaz moreno que esbarrou na saída do banheiro. Ele a levaria em casa, ela traria o gato à porta pra ele conhecer. Não deixaria ele entrar, não que não quisesse mas sim porque a saúde capilar de sua área pubiana era admirável e deplorável. Deu boa noite a ele, o levou a porta, fez um café fresco e pensou que naquele dia violeta virara sua cor preferida.