quarta-feira, 19 de março de 2014

Você traz a Coca-Cola, eu tomo. Você bota a mesa, eu como.

Nêga, quando te digo que estou de saco cheio dessa vida, você não acredita. Que minha vontade é quebrar essa casa, sair daquele emprego, tomar o último porre com os amigos e sumir, mandando todos que são contra à merda. Mas tem alguém que não posso mandar à merda: você.

Você quer coisa diferente. Você quer domingos de almoço na casa de sua mãe, você quer ir a praia depois do expediente, você quer shopping, você quer escola boa pros meninos que ainda nem existem, você quer um sofá novo, você quer que eu conserte as bicicletas, você quer perfume francês... você quer demais.

Eu não, nêga. Eu quero pouco. Eu quero ir pra um cantinho de terra dentro duma mata dessa, onde a única coisa que eu vou te ver vestindo é um vestidinho transparente que revele seus lindos seios amarronzados. Eu quero te trazer comida e água sempre que você quiser para depois lhe assistir comendo, perceber sua humanidade, fantasiar que se eu não te der comida, tu não come. Sem mim tu não vive. Eu quero é admirar tua felicidade e teu cansaço caminhando embaixo de sol a pino. Testa molhada, olhos entreabertos, gotas de suor, sorriso no rosto. Quero acordar de manhã, acender o primeiro cigarro e admirar sua silhueta nua iluminada pela luz que atravessa a veneziana. Quero observar seus cabelos molhados, colados em sua nuca enquanto nadamos num riacho, enquanto corremos na mata, enquanto dormimos ou estamos à mesa, enquanto comemos e, principalmente, nêga, enquanto eu como. Enquanto eu como... você.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Na prateleira à altura dos olhos

       A absorção nas gotas de chuva na janela junto ao barulho do motor do ônibus já tinha expulsado de sua mente todos os pensamentos que agora a pouco a habitavam. Ele olhava na direção da rua e vez ou outra mirava na direção dos letreiros pelos quais passava. Ele estava ocupado demais lendo "Chaveiro 24 horas", para se aperceber de que alguém agora se sentava ao lado.
- Cheio o ônibus, né?
       Ele olhou em volta, viu a nuca daquela única senhora que sentava no banco atrás do motorista e parou o olhar em sua acompanhante.
- Eu achei que você não ia vir falar comigo - disse o rapaz
- E eu achei que seria falta de educação minha - contestou a acompanhante - Pelo menos foi isso que eu pensei quando você entrou no ônibus e viu que eu estava ali na frente, mas mesmo assim sentou aqui atrás.
- Sempre gostei dessas poltronas mais altas aqui do fundo.
- Sempre odiei você nunca ter as respostas válidas, mesmo que sejam desculpas.
       Ela estava ali ao seu lado mais uma vez. A menina da adolescência. A menina da camisa do The Cure. A mesma que ele duvidou que um dia amasse. A mesma que ele dispensou por puro orgulho de não aceitar quem era e o que era. A mesma que um dia lutou mais que tudo para tê-lo de qualquer forma, mas que um dia, cansada, desistiu.
- Já terminou a faculdade? - retomou ela.
- Último período. Depois vou ter que voltar praquele fim de mundo, a cidade grande já tá grande demais pra precisar de mim... Tu ainda tem o mesmo cheiro - aproximou-se dela e inalou seu aroma - Menta com cigarro.
- Eu to aqui só de passagem, vim visitar a Glorinha, aliás, o papo tá muito bom e interessante, mas eu vou voltar lá pra frente - ignorou ela.
- Tu já ta descendo?
- Não, faltam umas cinco paradas ainda.
- Tu fica aqui até quando?
- Sexta - disse ela se levantando.
- Quer fazer alguma coisa?
- Quero, mas não com você.
       Ela já tinha começado a andar pelo corredor quando ele perguntou naquele tom mais alto de última tentativa o porquê de ela vir falar com ele. A reposta veio em ar entediado:
- Porque eu sou educada, eu já disse. - respondeu ela, parando e virando-se.
- Você não tem saudade?
- Uma pessoa só lê um livro de novo se ela gostou muito do livro e do final. Eu tenho saudades de muitos livros que li, mas que nunca lerei de novo só pelo enfadonhamento de já saber o que vai acontecer.
- E o que você faz para matar essa saudade que tá dentro de você?
Pausa.
- Eu abro numa página qualquer e, por pura ironia do destino, leio de novo um trecho qualquer, até que uma hora eu começo e me interessar de novo por aquele livro. E ai, como de supetão eu fecho o livro, ponho na estante de volta e vou pesquisar outros melhores que eu possa ler. Um dia, eu até acho um que me permita escrever uma parte do final...
- Eu subi sozinho na sua estante, né?
- Sim, mas tá numa parte da estante que fica visível para todas as vezes que eu passo por ela. E o medo de reler esse livro em especial é tanto que eu só reli um trecho uma vez. - disse ela dando um sorrisinho simpático e virando para continuar seu caminho.
       O rapaz voltou a olhar as gotas de chuva na janela, pensando se deveria realmente ter escrito um final sozinho, imaginando como um final diferente poderia ser, imaginando como seria se ainda não existisse um final, tentando aceitar o fato de livros não saírem sozinhos da estante e se imporem a ser lidos mais uma vez...

domingo, 13 de janeiro de 2013

o veredito de uma angústia

       A pergunta que não deixa e nunca deixará calar é a razão de todos um dia nos iludirmos, mesmo tendo consciência de nossos atos. A ciência nos fala de uma certa racionalidade que nos separa de outra classe de animais, porém os traços dessa racionalidade são imperceptíveis a olho nu. A humanidade é fraca demais para a dádiva divina da inteligência. Isso é claro. A inteligência nos diz a consequência de nossos atos, e nós ignoramos a premonição do sofrimento só por umas horas à mais na cama de pernas entrelaçadas, uma barra de chocolate a mais, um abraço a mais, uma amizade a mais. Se usássemos de todos os recursos cognitivos que realmente temos, não seriamos felizes nunca, porque pensar leva ao sofrimento. Pensar leva a saber que a felicidade sempre vai acabar antes que um miojo fique pronto. Pensar não sana nossas dúvidas, mas nos traz novas perguntas. Pensar não nos faz acertar, e sim nos afundar nas ilusões de que o próprio pensamento está correto. Pensar nos levar a insuportar a existência. Não dá mais pra segurar. Explode coração.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Milagre

       Chiquinha era menina bonita, vaidosa, sorridente, simpática e muda. Todos pareciam se espantar toda vez que iam falar com a menina e ela começava com gestos para expressar suas ideias de menina moça. Os mais próximos de Chiquinha tinham pena, entendiam que a vida não era fácil para a menina; "Coitada; tão bonita, tão sorridente...".
       A verdade era que Chiquinha não ligava para o fato de não falar. Ela escutava, do jeito dela, mas escutava. Um dia ela leu que Deus dá duas orelhas e uma boca pro indivíduo porque ele tem de ouvir mais do que falar; no mesmo dia ela escreveu para a mãe que Deus não tinha dado ouvido bom a ela, mas que ela conseguia ouvir com os olhos, e que se Deus deu dois olhos e uma boca com defeito a ela, é porque ela tinha é que ouvir muito, "se Deus não me deu boca, é porque eu não tenho o que falar", pensava a menina. Deus, admirado ao ver que a menina tinha entendido o sentido de sua deficiência, deu à menina o direito de falar uma palavra.
       Então, um dia todos na cidade ouviram aquela voz de barítono que vinha de todos as direções, como um trovão falante, anunciando que a muda iria falar uma palavra em praça pública na quarta-feira, 18h no horário dos homens. Toda a população se interessou no acontecimento, desmarcaram todos os compromissos para poder ir ver aquele milagre acontecer. "Mas ela nunca falou na vida, a voz dela deve ser linda e doce"; "Aposto que ela vai falar algo que deixe uma lição a todos"; "Ela vai falar alguma coisa relacionada ao amor, à amizade", e os pensamentos e apostas não paravam por ai, havia até quem dissesse que a menina ia revelar um grande mistério do mundo, ou o esconderijo de um tesouro.
       Já Chiquinha, sabia o que ia falar. Ela sabia que podia decepcionar uns, alegrar outros, mas sabia o que ditar a todos àqueles rostos curiosos que contemplavam o palanque da praça. Chiquinha decidiu que ia falar uma palavra que ela sempre admirou em seus anos de leitura labial, a complexidade dos fonemas da palavra, a combinação de dicções encantavam a menina, além de tudo essa palavra nomeava uma coisa que muito alegrava Chiquinha, essa coisa fazia Chiquinha sorrir, pular, chorar de emoção, se ela pudesse ela viveria dessa coisa, todo dia, e seria feliz, esse signo seria o alimento de seu corpo e de sua alma.
       Eis que chegou o dia, e às seis da tarde estava Chiquinha em cima do palanque, a igreja da praça às suas costas e o microfone à sua frente. Todos estavam lá. Todos esperavam agonizantemente o pronunciamento da menina. Então depois de uma oração feita pra dar sabedoria à menina na hora de gastar seu milagre, a menina fez o seu papel. E depois disso a multidão se aquietou. O mundo ficou tão silencioso quanto a cabeça de Chiquinha naquele momento. Os olhos espantados quase saltaram das órbitas, alguns desmaiaram de espanto, outros tiveram crises silenciosas de riso. E Chiquinha... Ah Chiquinha estava satisfeita ao ver a reação dos espectadores ao soltar a sua voz angelical, sereiana, para dizer "Rocambole".

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Seu budega

Eu num sô da elite, num sô na zona nobre, num istudei, num sei recitar poema (má que eu acho bonito eu acho!), num sei falar ingrês, num sei mexê em cumputador. Dia desse menino novo passou 'qui em frente com celular na mão, perguntei ele cumé que fazia pra mexê naquela bodega. Ele me mostrô umas tecrinha piquititinha por demais que eu num consegui vê do que se tratava no visor. Num uso óculo, bodega feia por dimais. Ismiucio os'óio pra vê aquelas letrinha piquena que aparece nas coisa má que nada, consigo xergá nada. Trabaio de jardinero em casa de granfino la pra área das mansão. Corto, capino, varro, limpo, aparo, colho, cuido das rosa da patroa. As rosas da patroa são as coisa mais linda de si vê! cada bitela dumas rosa vermeia! 'ses dia inté robei uma pra levar pra casa pra dá pra minha netinha. A bichinha passô pra formação de professora. Coisa mais linda é vê aquele monte de dente na boca da minha menina quano veio me dá a nutícia. Passei vô eu vo sê professora. Eu garrei ela no colo e rudupiei de alegria, é bom quando as criança da um gosto desse pra nois. É bom vê que ela vai tê uma vida meió que a minha, vai ter mais cundição, vai mandar os fio dela pra iscola de gente inteligente, que ela ta gostano do futuro que ela vai tê, gostano do trabaio. Eu gosto muito do meu trabaio. Minhas roserinha são minhas coisa mais linda, tem inté nome, nome da minha mãe, da minha avó, das minha duas filha, da mulher da minha vida Carmem, da minha neta, da minha patroa, isso dão sete rosera. Eu boto mata bixo, rego, podo, corta as rosa pra patroa, tiro os espinho e levo pra dentro de casa pra botar na sala da patroa, fica lindo que só. A patroa tem dois fio. O mais veio é surdo, mas inteligente que só, a gente fala com ele normal e ele entede tudin, vê tudin, sente tudin. Tenho uma pena danada do rapaz, num consegue arrumar namorada, nem amigo, nem nada. Ninguem tem paciença. Eu chamo ele pra cuidar do jardim comigo ele vai, faz uns sinal pra perguntar comé que faz as coisa, eu ensino e ele bota um sorriso de oreia a oreia quando pranta uma coisa, ou vê que o pé de melancia ta dando fruto, exempro; ai nessas hora o muleque fica tao bunito que eu queria ver rapariga destratar ele. Ele nunca quer ir pra iscola, que ficar no jardim comigo, na cozinha com a Graça ou vendo a irmã tocar piano. Ô diacho de coisa bunita também! Eu, ele mais a Graça sentamo em volta dela e ela toca as tecrinha, chega a arrupiá só de lembrá, e nois tenta imitar a melodia cum a boca, o menino não, ele só para e fecha os zoio. Antonte ele chorô, nois sabe que ele num é feliz, e ele não precisa falar pra nois sabê. Má nois tambem sabe que vimo ele chorano, e dai eu pensei qu'essa budega de musica é tao coisa que nem precisa ouvi pra senti. Ai que a gente vê cumé que a vida é bunita por demais, as rosas, o garoto que sente por demais, as canjica da minha minina puquê passô na prova, a cara da minha mulhé toda vez que eu chego em casa com o pão que nois bataia tanto pra comprá... Ih 'gora eu tenho que ir que a bendita ta chamando pra cumê... Vamo entrar siminino! ta sirvido? Só num repara na casa, que nois é humilde...

sábado, 3 de março de 2012

Minha louça

"Caro Sr. Teixeira,

fiquei sabendo da promoção que o senhor está a promover na cidade. Bem, eu aposto que o senhor deve ter recebido estórias maravilhosas sobre nascimentos de bebês, casamentos felizes e tudo o que há de clichê e feliz sobre famílias nas redondezas. Fico feliz por todos esses mentirosos que o enviaram essas cartas e por suas falaciosas felicidades.
Sim, mentira é uma palavra muito forte, mas verdadeira nesse caso. Aposto que alguns lhe enviaram cartas falando sobre como sofreram e agora deram a volta por cima. Sobre como suas mulheres, maridos, filhos morreram e agora eles se lembram deles numa linda lembrança de uma tarde de domingo. MENTIROSOS. É isso que eles são. Ninguém fica feliz depois de perder alguém para a morte, depois de ser traído, depois de perder sua casa. NINGUÉM. E se um dia, consegue-se ser feliz, não se deve creditar a felicidade em superação própria, não. Minha mãe morreu quando eu era adolescente, e acredite em mim, eu nunca superei a morte dela. Não. Nunca. Se eu fui feliz depois disso? Sim, eu fui. Mas não porque eu sou forte. Mas sim porque a vida continua. Ninguém abre mão da própria felicidade, e mortos estão mortos, sempre estarão. Não posso fazer nada por ela, nem pude quando o filho da puta do meu irmão a matou. Eu também não tenho a cara de pau de dizer que eu o perdoo, que eu entendo ele, já que a falecida era uma puta que nos maltratava e que iria me matar se ele não entrasse na frente e metesse a faca nela quinze vezes.
Ele está na prisão. Eu morro de raiva dele. Queria eu que minha mãe tivesse me matado naquele dia. Tanto sofrimento seria evitado. Acredite em mim, eu teria uma vida melhor se eu tivesse morrido naquele dia, senhor.
O senhor me entende? Um dia eu contei isso a uma freira, e ela disse que a minha historia é muito bonita, que eu deveria escrever um livro. Deus que me perdoe mas eu mandei aquela puta ir tomar no meio do cu dela. "O que há de bonito nessa vida fodida que eu tive?", eu perguntei. Como o senhor deve imaginar ela não soube me responder. Eu não entendo porque as pessoas querem transformar o sofrimento numa coisa bonita. Sofrimento é pra causar dor, se alguém realmente me admirasse, não me daria flores, não me diria palavras bonitas. Não é isso que eu quero. Eu quero ver a pessoa se colocar no meu lugar. Sofrer. Ai sim, eu ficaria feliz. Perguntaria a essa pessoa o que ela teria feito no meu lugar.
Mas eu não estou escrevendo para me lamentar, nem para desabafar, nem para criar pena. Quero falar sobre minha louça de porcelana.
Eu sou casada a quinze anos, e de lá pra cá não há nesse mundo um adjetivo que caracterize melhor minha vida do que "estável". Meu marido é estável, tem um emprego estável. Meu filho tem quatorze, suas notas no colégio são boas e estáveis, ele está pela primeira vez num relacionamento amoroso estável, com uma menina filha de uma advogada e um bancário, estáveis.
Minha vida é chata., entediante.
Meus amores são: em primeiro lugar, as rosas do meu jardim, eu as podo, rego, converso com elas e as corto para que elas cumpram o seu dever, um dos mais lindos na minha opinião: enfeitar e embelezar a vida. Em segundo lugar está minha costura, estou costurando uma nova cortina para o banheiro, está ficando ridícula, mas está me deixando feliz (ela está quase pronta!). Em terceiro, porém não menos importante está minha louça de porcelana. Todas as semanas eu a tiro do lugar, lavo peça por peça, enxugo, faço o polimento e guardo.
Eu a ganhei de presente de um amigo do Paulo, meu marido. O nome desse amigo é Geraldo. Ele é um homem alto, magro, cabelos bagunçados, fuma, bebe, xinga. O oposto de Paulo, instável.
Eu dei para Geraldo.
Dei uma, dei duas, dei três, dei mil vezes e daria mais um milhão se eu pudesse. Estar com ele era o meu único incentivo a continuar vivendo. Pensei mil vezes em me divorciar e ficar com ele (e ele teria aceitado), mas a graça estava na instabilidade do nosso relacionamento. Eu sei que se eu casasse com ele, ele ficaria exatamente como o Paulo. E eu daria para o primeiro melhor e mais jovem amigo que batesse à nossa porta. Eu não queria dar para outro. Eu queria o Paulo. Ele era a rosa que enfeitava a sala da minha vida. Entende?
Um dia ele disse que me amava demais para me ver casada com outro homem. Eu disse a ele que deixasse de ser um baitola dramático e me fodesse sobre a mesa da cozinha. Ele disse que não, que queria me amar como eu merecia. Então eu virei para ele e disse que eu era uma puta que deixava meu filho na escola e ia trair meu marido com o melhor amigo dele. "Eu não mereço o seu amor, Geraldo." "Mas eu quero te dar o meu amor." "E eu quero ser comida na mesa da cozinha, quem vai ter o pedido atendido?". Ele me mandou ir embora.
No dia seguinte apareceu aqui em casa. Chapéu na cabeça, todo bonito. Disse que estava passando para dizer adeus, e nos trazer presentes de despedida. Deu ao Paulo uma camisa pólo, ao Bruno (nosso filho) deu um livro, e a mim deu um conjunto de pratos de porcelana, lindo, com rosas amarelas desenhadas. "Pra você lembrar de mim."
Desde então, eu cuido daquela louça como se estivesse cuidando dele, nunca a usei. Nunca a tirei do armário com outro fim a não ser cuidar dela, mimá-la. Tenho medo de perder alguma peça, de trincar, de arranhar com uma faca. Não. Não a uso porque a amo demais, mais do que amei ao Geraldo, talvez.
Semana passada eu recebi a mais linda das notícias! Um revista de jardinagem vinha me fazer uma entrevista sobre as minhas roseiras! As minha meninas! Eu fiquei empolgadíssima. Eles viriam na quarta, às 11h. Então eu pensei que fosse a hora de usar o Geraldo. Quer dizer, a louça do Geraldo. Então virei pro meu filho "Bruno, vai lá no armário da sala de jantar e pega uma caixa grande que tem lá pra mãe. Cuidado que é pesado! Pega e bota na mesa da cozinha."
Fui dar a notícia às minhas meninas. "Todo esse esforço que mamãe tem com vocês valeu a pena! Nós vamos ficar famosas!". Eu estava deliciada. BANG. Um estardalhaço invadiu a cozinha. Quando eu irrompi pela porta encontrei um Bruno pasmo dizendo que não tinha prestado atenção onde a mesa estava e soltou o Geraldo no ar. Ou seja, a louça. Meus olhos se encheram de lágrimas, eu prendi o choro, me abaixei, abri a caixa e vi os cacos da minha paixão. Bruno disse que sentia muito, queria saber o que ele podia fazer para me ajudar. "Calar a boca é um bom começo, seu demente." eu pensei. Então eu virei para ele e disse:
-Sabe, meu filho. Tem coisas que a gente dá muito valor nessa vida e por isso superprotege, não as aproveita. Essa louça era uma das minhas maiores paixões na vida. Sim, essa que você acabou de quebrar. Entretanto eu me pergunto se o grande erro foi seu, que fodeu com a minha paixão, ou se foi meu, que nunca fez uso da louça. Seja como for, essa louça representava uma ilusão. Uma ilusão de que se eu a lavasse toda semana eu teria o mesmo prazer que eu tinha dando pra quem me deu ela. Não faça essa cara de assustado. Não me julgue, moleque. Você não sabe o que é vida, você não sabe o que é se enterrar em merda. Mas você está prestes a descobrir. Ah se está! Por que eu não aguento mais essa vida. Eu gosto de rosas, eu gosto de coisas que crescem de novo que renascem não importa quantas vezes a cortem. Minha missão aqui era te criar, ver que você já estava pronto pra vida. Bem, suponho eu que você já esteja bem grandinho, já que você acabou de tentar foder com a minha, seu imundo! Então eu acho que não tem mais nada que me prenda aqui, eu não quero ficar aqui pra ver você se tornar um inútil como seu pai, nem pra lavar os lenços cheios de catarro daquele maldito. Eu quero começar a fazer uma coisa que eu nunca fiz: viver. Renascer como uma rosa podada. Amarela, linda. E quem sabe alguém um dia me pinte num prato e me dê de presente a uma paixão.
-Eu sei que você vai ter raiva de mim, eu sei que eu estou fodendo tudo. Mas foi você que começou esse jogo. Fale pro seu pai que tem feijão congelado no freezer, e que o remédio pra hemorroida dele está na pia do banheiro. E você, aproveite a vida sem uma mãe. Eu já estive no seu lugar, e acredite: vai ser uma merda. Não há mais nada que eu possa fazer agora. Pensasse nas consequências antes de 'não ver onde estava a mesa'.
Virei as costas e sai. Me mudei pra essa nova cidade de onde agora escrevo e peço para que minha história seja lida na quermesse junina. Agora estou contente, e pela primeira vez posso dizer que superei algo: a perda da minha louça. O senhor tinha que ver como ela era linda...
Bem, o que o senhor me diz? Na minha opinião, a minha históra é muito mais interessante do que qualquer outra que o senhor recebeu. É uma mentira, admito. Mas uma mentira muito mais convincente do que essas banais sobre as quais me referi, aqui nós temos um exemplo de vida! Um estória inusitada! Além de ter um final feliz.

Espero por sua resposta,

Regina Gonzaga."

sábado, 21 de janeiro de 2012

Chão de giz

"Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mas nem porque"
Chico Buarque. "Olhos nos olhos".


Olá. Gostaria de esclarecer os acontecimentos desses últimos tempos com clareza. Você me conhece, sabe que eu não suporto mal-entendidos ou fatos e acontecimentos que possam deixar dúvidas à sua ou a qualquer mente errante.

Quando eu me fui, tranquei-me numa casa de parentes nesse fim de mundo de onde escrevo esta carta. Tudo me entristecia. Fosse o pesamento de que a galinha em minha mesa tinha sido morta de forma calculista, apenas com intuito de me alimentar, fosse pelas flores pisadas da calçada, fosse por um simples olhar áspero de uma criança. Eu lutava tanto, mas as lágrimas insistiam em recusar a se retirarem dos meus olhos. Tudo me lembrava você. Fumaça de cigarro, flores na janela ou chocolate belga. Um vazio habitava meu peito, como se o coração batesse a vácuo. Meu olfato procurava seu cheiro no travesseiro, minha audição por vezes julgava escutar sua voz quente ao pé do ouvido e eu, ouso admitir, por uma ou duas vezes, acordei no meio da noite com a mão em meu sexo em brasa depois de um sonho que te incluía.

Chorei, devaneei, enlouqueci. Passei a duvidar da veracidade do passado, sua imagem passou a ser turva como um sonho antigo. Minha mente, prestativa, passava a te rejeitar de tal modo que eu duvidava de sua existência. Mas não adiantava, de algum modo eu consegui rejeitar o meu consciente para não te rejeitar. Pensei em voltar, pensei em me desculpar por minha tolice, pensei em pedir desculpa pelos seus erros, pensei em te pedir para ser l'ombre de ton chien, assim como sua musa Piaf um dia o fez. Ah, como eu quisera que as coisas tivessem sido diferentes. Eu correria daqui do fim do mundo à cidade, levando prendas a ti. Ouso dizer que te mataria só pra não ter que suportar a ideia de te ver um dia desfilando com seu novo alguém diante de meus olhos embriagados.

Amizades me disseram para sair dessa fossa de merda que me enterrei. A ideia me parecera maluca, nunca conseguiria te esquecer, deixar de te amar. E, de fato, nunca irei.

Não vou tentar iludir a nenhum de nós que eu te amo. Não pelo que você é. Se eu pudesse formar uma pessoa e por nela todos os defeitos que eu detesto em um ser humano, eu teria como resultado um clone seu. Aí, eu olharia para aquele corpo, aquele rosto suave e adormecido, e poria nessa criatura todas as qualidades que eu mais prezo, só para ficar perfeitamente igual a ti.

Eu te amo por mim. Eu amo o seu eu dentro de mim. Eu amo as manhãs de cócegas, eu amo o gosto de chocolate do seu beijo, eu amo as brigas, eu amo ter fugido de casa 15 minutos depois de você ter saído para ver sua mãe. Se eu não amasse isso tudo, que solução teria eu?

Passei a ser feliz ali, com o corpo enterrado em merda até a cintura naquela fossa que hoje já está decorada ao meu gosto. E nesse momento eu espero de todo o meu coração que minhas convicções de meses atrás estivessem certas: que você não me amava o bastante para sofrer com a minha partida. Caso confirmes minha razão, passe aqui nesse endereço do envelope da carta para tomarmos um cappuccino. Verás que me refiz, que aquele sorriso de antes está de novo tatuado em minha cara. Te apresentarei minha nova companhia, e nos contentaremos em ser bons e velhos amigos com algumas historias a mais na bagagem, mal não irá nos fazer, e se fizer teremos direito a uma despedida agradável. E caso você um dia me amara do jeito que falei, por favor não me conte. Pois eu posso sobreviver com toda essa merda em volta de mim, mas nunca com o arrependimento e a culpa de ter te feito sofrer.

No mais, é isso. O barulho do engarrafamento continua me enlouquecendo, eu continuo odiando limpar a casa e meus maiores companheiros são dois buldogues deitados aos meus pés no momento. Eles irão gostar de você.

Um abraço e um beijo.

De mim.