quinta-feira, 28 de junho de 2012

Milagre

       Chiquinha era menina bonita, vaidosa, sorridente, simpática e muda. Todos pareciam se espantar toda vez que iam falar com a menina e ela começava com gestos para expressar suas ideias de menina moça. Os mais próximos de Chiquinha tinham pena, entendiam que a vida não era fácil para a menina; "Coitada; tão bonita, tão sorridente...".
       A verdade era que Chiquinha não ligava para o fato de não falar. Ela escutava, do jeito dela, mas escutava. Um dia ela leu que Deus dá duas orelhas e uma boca pro indivíduo porque ele tem de ouvir mais do que falar; no mesmo dia ela escreveu para a mãe que Deus não tinha dado ouvido bom a ela, mas que ela conseguia ouvir com os olhos, e que se Deus deu dois olhos e uma boca com defeito a ela, é porque ela tinha é que ouvir muito, "se Deus não me deu boca, é porque eu não tenho o que falar", pensava a menina. Deus, admirado ao ver que a menina tinha entendido o sentido de sua deficiência, deu à menina o direito de falar uma palavra.
       Então, um dia todos na cidade ouviram aquela voz de barítono que vinha de todos as direções, como um trovão falante, anunciando que a muda iria falar uma palavra em praça pública na quarta-feira, 18h no horário dos homens. Toda a população se interessou no acontecimento, desmarcaram todos os compromissos para poder ir ver aquele milagre acontecer. "Mas ela nunca falou na vida, a voz dela deve ser linda e doce"; "Aposto que ela vai falar algo que deixe uma lição a todos"; "Ela vai falar alguma coisa relacionada ao amor, à amizade", e os pensamentos e apostas não paravam por ai, havia até quem dissesse que a menina ia revelar um grande mistério do mundo, ou o esconderijo de um tesouro.
       Já Chiquinha, sabia o que ia falar. Ela sabia que podia decepcionar uns, alegrar outros, mas sabia o que ditar a todos àqueles rostos curiosos que contemplavam o palanque da praça. Chiquinha decidiu que ia falar uma palavra que ela sempre admirou em seus anos de leitura labial, a complexidade dos fonemas da palavra, a combinação de dicções encantavam a menina, além de tudo essa palavra nomeava uma coisa que muito alegrava Chiquinha, essa coisa fazia Chiquinha sorrir, pular, chorar de emoção, se ela pudesse ela viveria dessa coisa, todo dia, e seria feliz, esse signo seria o alimento de seu corpo e de sua alma.
       Eis que chegou o dia, e às seis da tarde estava Chiquinha em cima do palanque, a igreja da praça às suas costas e o microfone à sua frente. Todos estavam lá. Todos esperavam agonizantemente o pronunciamento da menina. Então depois de uma oração feita pra dar sabedoria à menina na hora de gastar seu milagre, a menina fez o seu papel. E depois disso a multidão se aquietou. O mundo ficou tão silencioso quanto a cabeça de Chiquinha naquele momento. Os olhos espantados quase saltaram das órbitas, alguns desmaiaram de espanto, outros tiveram crises silenciosas de riso. E Chiquinha... Ah Chiquinha estava satisfeita ao ver a reação dos espectadores ao soltar a sua voz angelical, sereiana, para dizer "Rocambole".