sábado, 21 de janeiro de 2012

Chão de giz

"Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mas nem porque"
Chico Buarque. "Olhos nos olhos".


Olá. Gostaria de esclarecer os acontecimentos desses últimos tempos com clareza. Você me conhece, sabe que eu não suporto mal-entendidos ou fatos e acontecimentos que possam deixar dúvidas à sua ou a qualquer mente errante.

Quando eu me fui, tranquei-me numa casa de parentes nesse fim de mundo de onde escrevo esta carta. Tudo me entristecia. Fosse o pesamento de que a galinha em minha mesa tinha sido morta de forma calculista, apenas com intuito de me alimentar, fosse pelas flores pisadas da calçada, fosse por um simples olhar áspero de uma criança. Eu lutava tanto, mas as lágrimas insistiam em recusar a se retirarem dos meus olhos. Tudo me lembrava você. Fumaça de cigarro, flores na janela ou chocolate belga. Um vazio habitava meu peito, como se o coração batesse a vácuo. Meu olfato procurava seu cheiro no travesseiro, minha audição por vezes julgava escutar sua voz quente ao pé do ouvido e eu, ouso admitir, por uma ou duas vezes, acordei no meio da noite com a mão em meu sexo em brasa depois de um sonho que te incluía.

Chorei, devaneei, enlouqueci. Passei a duvidar da veracidade do passado, sua imagem passou a ser turva como um sonho antigo. Minha mente, prestativa, passava a te rejeitar de tal modo que eu duvidava de sua existência. Mas não adiantava, de algum modo eu consegui rejeitar o meu consciente para não te rejeitar. Pensei em voltar, pensei em me desculpar por minha tolice, pensei em pedir desculpa pelos seus erros, pensei em te pedir para ser l'ombre de ton chien, assim como sua musa Piaf um dia o fez. Ah, como eu quisera que as coisas tivessem sido diferentes. Eu correria daqui do fim do mundo à cidade, levando prendas a ti. Ouso dizer que te mataria só pra não ter que suportar a ideia de te ver um dia desfilando com seu novo alguém diante de meus olhos embriagados.

Amizades me disseram para sair dessa fossa de merda que me enterrei. A ideia me parecera maluca, nunca conseguiria te esquecer, deixar de te amar. E, de fato, nunca irei.

Não vou tentar iludir a nenhum de nós que eu te amo. Não pelo que você é. Se eu pudesse formar uma pessoa e por nela todos os defeitos que eu detesto em um ser humano, eu teria como resultado um clone seu. Aí, eu olharia para aquele corpo, aquele rosto suave e adormecido, e poria nessa criatura todas as qualidades que eu mais prezo, só para ficar perfeitamente igual a ti.

Eu te amo por mim. Eu amo o seu eu dentro de mim. Eu amo as manhãs de cócegas, eu amo o gosto de chocolate do seu beijo, eu amo as brigas, eu amo ter fugido de casa 15 minutos depois de você ter saído para ver sua mãe. Se eu não amasse isso tudo, que solução teria eu?

Passei a ser feliz ali, com o corpo enterrado em merda até a cintura naquela fossa que hoje já está decorada ao meu gosto. E nesse momento eu espero de todo o meu coração que minhas convicções de meses atrás estivessem certas: que você não me amava o bastante para sofrer com a minha partida. Caso confirmes minha razão, passe aqui nesse endereço do envelope da carta para tomarmos um cappuccino. Verás que me refiz, que aquele sorriso de antes está de novo tatuado em minha cara. Te apresentarei minha nova companhia, e nos contentaremos em ser bons e velhos amigos com algumas historias a mais na bagagem, mal não irá nos fazer, e se fizer teremos direito a uma despedida agradável. E caso você um dia me amara do jeito que falei, por favor não me conte. Pois eu posso sobreviver com toda essa merda em volta de mim, mas nunca com o arrependimento e a culpa de ter te feito sofrer.

No mais, é isso. O barulho do engarrafamento continua me enlouquecendo, eu continuo odiando limpar a casa e meus maiores companheiros são dois buldogues deitados aos meus pés no momento. Eles irão gostar de você.

Um abraço e um beijo.

De mim.