sexta-feira, 2 de julho de 2010

Meu herói

-O senhor tem certeza, pai?
-Infelizmente sim.
-Tá, eu to indo praí.

Encerrei a chamada, sentei no sofá antes que caísse duro no chão. Não que essa notícia fosse tão surpreendente assim, mas recebê-la era muito pior do que eu imaginava que seria. Eu sabia que ela logo viria, a saúde do vovô já não estava lá essas coisas há tempos, eu tinha a consciência de que esse momento logo chegaria, mas não havia me preparado, a gente nunca se prepara para o que é necessário, inevitável. Minha mulher entrou na sala, viu que eu estava chorando e veio me dar um abraço, eu adorava o fato dela nunca perguntar o que estava acontecendo, é como se ela lesse minha mente e soubesse exatamente o que eu passava, o que eu queria e o que eu precisava. Naquela hora, eu precisava de um abraço. Ela se sentou ao meu lado, atendeu à minha necessidade e falou:

-Você quer que eu vá com você?

Eu não iria fazer minha mulher grávida de sete meses sair de casa àquela hora sem que fosse realmente necessário. Então expliquei a ela que seria melhor ela descansar, pois o dia seguinte seria difícil e que eu iria precisar dela.
Me arrumei, dei um beijo nela, outro em sua barriga e, nesse momento, lágrimas vieram aos meus olhos, então olhei para a barriga da minha mulher e disse:

-Hoje, minha filha, um grande homem se foi, um homem que você não terá a sorte de conhecer, mas que ainda ouvirá muitas histórias à respeito.

Dito isso, tratei de sair de casa antes que começasse a de fato chorar.
Entrei no carro respirando fundo, me controlando. Meu avô sempre me disse que ele não queria choro quando ele morresse, ele admitia a própria hipocrisia ao dizer isso, mas ele achava que definitivamente o melhor era não chorar por tristeza, para ele, a tristeza é um sentimento ruim demais para merecer nossas lágrimas.

-Guarde suas lágrimas para nossa próxima crise de riso, está bem? - aconselhava ele.
Meu Deus, como doía o fato de que não haveria próxima crise de riso, não haveria mais almoços em família aos domingos, agora, o vovô só se faria presente em minhas lembranças e nas de todos da nossa família, todos que puderam estar próximos o bastante para ter a chance de admirar aquele homem, aquele herói.
Lembrei da minha infância, na qual religiosamente eu ia passar fins de semana no sítio com ele e a vovó, lembrei das tardes de sábado, de como ele sentava na grama cansado e mandava aquele "Puta que pariu, moleque, um dia você me mata com esses piques", lembrei das histórias engraçadas contadas na sala depois do jantar, de como ele me fazia rir zoando com a cara da vovó, como ele tinha crises e crises de riso da minha cara quando ele conseguia me dar um susto, como ele quando eu entrei na adolescência, me dava dinheiro para eu comprar playboys escondido do meu pai, de quando ele despencava lá do sítio só para me levar e me buscar nas festas, dos conselhos de como cortejar uma moça, do fusca que ele me deu no meu aniversário de 18 anos, de como ele chorou no meu casamento, de como ele vibrou com a notícia de que seria bisavô.
Chegando na casa da vovó, a primeira pessoa que vi foi minha tia, ela sempre foi uma mulher que me impressionou com sua força. Ela não chorava, e quando me viu, apenas veio me abraçar. Abraçou-me com todo o carinho materno que ela tinha por mim. E eu, recebi aquele carinho, aquela calma, aquela segurança, que só as nossas figuras maternas conseguem nos passar. Meu pai estava na cozinha com a minha avó. Mas eu não fui até lá ver eles, fui direto para o quarto, eu queria ver ele, estar com ele pela última vez.
Quando cheguei no quarto o choro me veio à garganta novamente. Me controlei mais uma vez, sentei-me na cama, ao lado do corpo, peguei em sua mão enrugada e gélida. E comecei a falar:

-Olha vovô, eu não sei se o senhor consegue me escutar, mas eu vou fingir que sim e falar tudo que preciso. Talvez e nunca tenha dito ao senhor que o senhor era um grande homem, um sábio, um herói. Talvez eu nem tenha dito ao senhor que eu te amo muito, que o senhor é o meu ídolo, e que, respondendo de novo à uma pergunta que o senhor me fez, quando eu crescer eu quero ser como o senhor, grande. E saiba que eu nunca deixarei de amar o senhor, nunca esquecerei o senhor, sempre lembrarei do que o senhor me ensinou, me disse, me proporcionou e de todos os momentos maravilhosos que passamos juntos, queria pedir desculpa por não atender ao seu pedido de segurar meu choro, e dizer que nós temos muito orgulho do senhor, até a sua bisnetinha que nem teve a sorte de te conhecer. Te amarei sempre, meu velho.

Beijei sua testa e fiquei durante tempo indeterminado admirando aquele homem, aquele herói.

4 comentários:

. débora disse...

cara, tô chorando...
sabe imaginei meu avô, deu um aperto aqui. :/

Vanessa Cristina disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vanessa Cristina disse...

Tenho um apreço imenso por essas histórias de vô-herói.
O meu o era. Será sempre.

Sinta-se a vontade pra voltar, no meu canto.

Beijo.
:*

Jaya Magalhães disse...

Dalton,

Poucas vezes na vida chorei com literatura. E, olha, sou uma pessoa chorona. Hoje, ao te ler, chorei. Desaguei, na verdade.

O que quero dizer com isso? Tua escrita, moço. Você sabe encaixar as palavras de maneira tal, que elas conseguem viver.

Eu não soube deixar de visualizar a cena. A garganta travada, ao receber a ligação. O abraço da mulher, o beijo na barriga. O abraço da tia. O último encontro. A necessidade de falar do amor. De falar, apenas.

Eu fui um pouco esse cara, nesse texto. Porque, ainda que relatando qualquer coisa sobre a morte, o que você fez com essas letras é pura vida.

Obrigada pela leitura.

Um beijo é teu.